Mary e Max: Uma Amizade Diferente

MM Poster

(Mary and Max; Australia; Dir.: Adam Elliot; 2009)

[TEXTO COM SPOILERS!]

Nem mesmo provar um cachorro quente de chocolate representaria uma experiência tão única e agridoce quanto assistir a Mary e Max. Marcante por sua rica ambição temática, desenvolvida nas entrelinhas de diversas gags visuais e uma atmosfera decadente, essa animação de 2009 – que sequer estreou comercialmente em grandes mercados, como os EUA, em que foi exibida apenas em festivais independentes e, após, lançada diretamente no formato de home video -, infelizmente, ainda é conhecida por poucos, embora tenha o potencial de tocar muitos com sua delicadeza e sensibilidade.

Dirigido e roteirizado pelo australiano Adam Elliot (vencedor do Oscar de melhor curta de animação de 2004, por seu trabalho em Harvie Krumpet) com base em sua própria amizade com um pen pal de Nova York, o filme conta a história da também australiana Mary Daisy Dinkle, que, aos oito anos de idade, para amenizar a sua solidão, provocada pelo desamparo de seu pai alienado e de sua mãe alcoólatra e cleptomaníaca, bem como pelo isolamento oriundo do bullying praticado por seus colegas de classe, busca conforto no envio de uma carta a um completo estranho, sob o pretexto de encontrar uma resposta para sua dúvida a respeito de como os bebês nascem (será que nos EUA eles também surgem no fundo de copos de cerveja, como seu tio lhe contara? Ou viriam de latas de Coca-Cola, tendo em vista a notória difusão do refrigerante entre os americanos?). O completo estranho é Max, um nova-iorquino de meia idade que vive igualmente no silêncio de uma vida solitária, embora oprimido não só pelos barulhos da caótica cidade, mas também pela incompreensão quanto ao mundo que o cerca, em grande parte decorrente da doença mental com a qual convive desde criança, a Síndrome de Asperger.

Apesar da relativa experiência do diretor neste campo, adquirida por meio do trabalho em seus quatro curtas anteriores, o filme pouco inova no uso da técnica stop motion, as famosas “massinhas” animadas, das quais o saudoso Pingu (lembra dele?) foi expoente máximo entre as crianças das décadas de 1980 e 1990. Provavelmente em decorrência de um orçamento mais limitado, a construção dos modelos de massa e a animação de seus movimentos não impressionam tanto aqui, em comparação com outras obras mais consagradas, como Coraline, A Noiva Cadáver e Wallace & Gromit. Porém, essa restrição não pode nos levar a subestimar os inúmeros desafios trazidos por essa complexa escolha de animação. Apenas a construção da máquina de escrever de Max, por exemplo, demandou, por si só, nove semanas de trabalho da equipe.

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Aliás, alguns até podem suscitar dúvidas acerca da necessidade do uso da animação para contar a história do filme, que é ambientada em lugares existentes e envolve relações críveis entre seres humanos. Contudo, logo se percebe que, não obstante essas características básicas da trama, são muito bem exploradas as possibilidades que somente a liberdade conferida pelo “desenho” seriam capazes agregar.

Inicialmente, o uso da animação é justificado para conferir fluidez e leveza a uma trama que, de outra forma, poderia ser dominada por um clima excessivamente pesado. Além disso, diversos recursos comuns a essa técnica de filmagem são empregados para comentar de maneira inusitada a trama, como os balões de pensamento, que remetem à linguagem dos quadrinhos e aqui são utilizados para ilustrar as representações da realidade decorrentes das mentes criativas de Mary e Max. O mesmo pode ser dito sobre os desenhos infantis da menina – que, ao ganharem movimento, nos dão maior dimensão da sua fértil imaginação – e do destaque para seus erros de grafia nas cartas enviadas (“tears” tornam-se “teers”; “excited” torna-se “exsnited”), que reforçam a pequena idade da personagem e, por tabela, sua própria falta de maturidade para debater muitos dos temas que surgem nas conversas.

Não se pode ignorar, ainda, os olhos expressivos de todo o “elenco” (particularmente dos protagonistas), recurso visual comum às animações como um todo, não só pelo atrativo que representa ao público infantil (que aqui não se faz objetivo central, pelo próprio contexto da narrativa), mas principalmente pelo potencial de acentuar a reação dos personagens de forma mais evidente e, com isso, nos trazer para mais perto de seu mundo interior, o que demandaria mais sutileza ao se trabalhar com atores “de carne e osso”. Na mesma linha, a escolha da animação proporciona ao diretor trabalhar com mais destaque a movimentação dos personagens, caso de Max – cujos lentos passos pelas ruas de Nova York não escondem o peso decorrente de sua obesidade e de seu desânimo – e da mãe de Mary – cujo ininterrupto consumo de bebidas álcoolicas resulta em uma postura comicamente instável, marcada por uma permanente tremedeira por todo o corpo. A linguagem permite, por fim, a revelação de surpresas do roteiro de forma mais orgânica, como no dramático momento em que descobrimos que Mary carrega um feto em seu ventre, revelação que demandaria outra aproximação por parte dos roteiristas, caso a produção fosse filmada em live action.

juntos

A referida ausência de inovação da técnica de stop motion muito menos significa que o longa peca em seu visual. Na construção de um universo destacado por sua decadência moral, Elliot nos apresenta a dois mundos de paletas notoriamente distintas, mas unidos em sua melancolia. A Austrália de Mary é marcada por tons sépia, não por acaso marrons como a cor preferida da menina e a tonalidade de sua marca de nascença. A Nova York de Max, por sua vez, não foge do preto e branco, tão sem vida quanto seu sistemático cotidiano. Essa ausência de cores muda apenas quando sua recém-“conhecida” amiga lhe envia um desenho de si própria, que representa o único objeto marrom no lado americano da história, e um pompom vermelho, que Max logo incorpora ao seu solidéu (o “chapeuzinho” judaico), passando, então, a carregar um pouco de cor (e, logo, de vida) em seus dias. E não é por acaso que essa cor quente seja resultante da amizade que viria a transformar os rumos de Max, nem que o pompom suma e reapareça exatamente nos momentos em que a relação é interrompida e retomada, como um termômetro da cumplicidade da dupla.

Essa precisa escolha de cores do filme é bem complementada pelo seu design de produção, que se revela simples, mas eficiente ao não apenas expor os hábitos excêntricos dos personagens-título, como também ao situar a narrativa, por meio dos cenários e figurinos, temporalmente (na discreta progressão da história ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990) e geograficamente (sendo nítida a diferença entre as paisagens urbanas e provincianas que dividem o tempo de tela).  É digna de nota, ainda, a forma como as escolhas visuais retratam a atmosfera decadente do mundo apresentado, um espelho sombrio do nosso, do que são prova uma Estátua da Liberdade desanimada e obesa, e um clone da clássica figura de Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo, cujo hábito de jogar bitucas de cigarro no chão da (já imunda) cidade irrita Max.

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Com a mesma simplicidade, o apartamento nova-iorquino nos transporta ao mundo de permanente opressão em que vive o coprotagonista, sem que, para isso, o competente diretor de arte da película (o próprio Adam Elliot) sacrifique seu humor peculiar e sua grande atenção aos detalhes na composição dos objetos de cena. Assim, em meio a móveis de aspecto severo e instrumentos de época, como a citada máquina de escrever, podemos enxergar até mesmo uma coleção de unhas catalogadas por ano de corte. O apuro estético da produção também pode ser notado na semelhança entre as estantes de Mary e Max, algo que aproxima seus gostos, mesmo ao ressaltar suas diferenças, na medida em que Max exibe em suas prateleiras uma coleção original incompleta dos personagens de seu programa favorito, Os Noblets, enquanto Mary, fã do mesmo desenho, guarda na estante seus Noblets feitos artesanalmente com conchas, goma e ossos de galinha.

Ainda sobre o aspecto visual, merece destaque a fotografia capitaneada por Gerald Thompson, que demonstra habilidade ao utilizar a favor da narrativa a repetição de enquadramentos, como se observa pela tendência de Max estar no centro dos planos em que aparece, simetria que remete ao seu expresso desejo de que tudo tenha uma ordem, sentimento frequentemente vinculado à Síndrome de Asperger. Não menos impressionante é o inteligente jogo de câmera que, no terceiro ato da projeção, leva o espectador a, instintivamente, esperar que Mary esteja mais uma vez abrindo a caixa de correio para conferir se havia recebido uma resposta de Max, mas o surpreende ao revelar que, na verdade, se tratava da porta de um armário de sua cozinha, que ofereceria outra espécie de resposta a seus problemas, em uma elegante rima visual.

No entanto, o ápice da fotografia do longa reside no macabro balé circular da câmera em torno da moça no momento em que cede ao derradeiro ato cobrado por anos de depressão. Enquanto o ambiente é gradualmente tomado por uma tinta preta que escorre do teto e encobre todos os medos e as esperanças da protagonista, somos transportados ao seu mundo interior, no qual quadros com suas memórias mais queridas dançam em um ritmo melancólico e em harmonia com os movimentos embriagados de seu corpo, ao passo em que sua frágil mente, antes tomada pela apatia, potencialmente se entrega uma última vez à saudade, ao arrependimento e à dor.

que sera sera

A cena não teria o mesmo impacto, porém, se não fosse acompanhada pela tocante versão de Pink Martini (da bela “Sympathique) para o clássico “Que Sera, Sera, que descreve uma jovem garota que, ao perguntar à sua mãe, sua professora de infância e seu namorado acerca das possibilidades positivas do futuro, recebe como resposta o título da canção, que expõe a inevitabilidade das coisas e, portanto, a ausência virtual de qualquer poder de interferência de Mary para lutar contra o estado emocional em que se encontra (“que sera sera / whatever will be, will be / the future’s not ours to see /que sera será”).

É interessante notar, inclusive, como toda a resolução desenvolvida no terceiro ato do filme é sutilmente pontuada por sua trilha sonora.

Antes dos preparativos para o iminente suicídio, em uma montagem que demonstra a persistência de Mary em relação à expectativa de resposta de Max quanto ao seu pedido de perdão, a trama é embalada por uma versão orquestrada do clássico That’s Life, de Frank Sinatra. E não é por acaso, já que a sua letra trata da esperança remanescente de dias melhores, diante de um presente desolador, revelando que a moça, naquele momento, ainda conseguia encontrar um objetivo – a reconciliação com seu único amigo – que lhe dava forças para combater a depressão que lhe atormenta. É o que se infere, por exemplo, das estrofes inicial e final da música, embora nunca cheguem a ser enunciadas na projeção:

“That’s life (that’s life), that’s what all people say
You’re riding high in April,
Shot down in May
But I know I’m gonna change their tune,
When I’m back on top, back on top in June

[…]

That’s life (that’s life), that’s life, I can’t deny it,
Many times I thought of cuttin’ out, but my heart won’t buy it
But if there’s nothing shaken come here this July,
I’m gonna roll myself up in a big ball and die”

Assim como a transição observada entre tais limites da canção, Mary sucumbe à sensação de vazio interior e protagoniza a cena tristemente icônica já comentada.

Contudo, ao final da execução de “Que Sera, Sera”, quando ouvimos os primeiros acordes do tema principal do filme (“Perpetuum Mobile”) ressurgirem, já sabemos de antemão que tudo ficará bem ali. Com efeito, a prova definitiva de que a equipe de produção sabe como manipular as emoções de seus espectadores é o brilhante retorno de tal tema musical, tão inspirador na sensação de progressão e reflexão que provoca desde os instantes em que nos é apresentado, logo nos primeiros minutos de projeção. Ao seu lado, diversas outras composições de inspiração clássica auxiliam a imprimir tom melancólico, ainda que por vezes meigo, à narrativa, variando adequadamente de acordo com as camadas mais pessimistas ou otimistas que a trama expõe, como a melodia acelerada que reflete a excitação de Max ao responder a primeira carta de Mary, ao mesmo tempo em que segue a cadência dos rápidos movimentos da máquina de escrever.

livro de emoções

A trilha é acompanhada também de uma montagem eficiente, que é bem-sucedida em seu propósito de aproximar personagens separados faticamente por muitos quilômetros de distância e retratar de forma econômica não apenas o passado de seus protagonistas, como também ao acompanhar muitos anos de sua trajetória futura – no caso de Mary, a evolução da infância à vida adulta, com os muitos eventos que a marcaram, trágicos e alegres. São particularmente bem executadas a breve história das muitas (e inusitadas) profissões de Max e a tensão final acerca do encontro entre os heróis, seja na porta da casa da moça ou no interior do apartamento do senhor.

Impressiona, ainda, a proeza de manter nosso interesse em ambos os protagonistas, mesmo quando longos minutos são investidos, sem pressa, na exploração da história de apenas um deles – minutos esses necessários para o estabelecimento de uma trama sólida e igualmente relevante em ambos os eixos da narrativa, embora signifiquem o completo desaparecimento de tela da contraparte, que, todavia, nunca chega a ser esquecida por nós no processo. Outro feito notório, nesse contexto, é a manutenção da tensão acerca da possibilidade de encontro entre os personagens, por cuja vida, em alguns momentos, realmente tememos, ao contrário de produções nas quais, desde o início, parecem inevitáveis as formas de resolução dos conflitos criados.

Tears for Max

Apesar de sua significativa contribuição, nenhum desses elementos (efeitos visuais, design de produção, fotografia, som e montagem) sustentaria a obra grandiosa que Mary e Max é se não contassem com um roteiro tão cuidadoso, sensível e original, que trata seus solitários protagonistas não como meras cobaias do fracasso ou manequins excêntricos na vitrine da depressão, mas com carinho e respeito. Aqui, a delicadeza e a devoção não ocorrem apesar das imperfeições dos personagens, mas justamente por causa delas.

Já em nosso primeiro contato com os personagens, conhecemos os rótulos que a sociedade imprimiu sobre essas sofridas pessoas, e que eles próprios internalizaram em seus cotidianos. Se Mary imediatamente nos é apresentada pelo espirituoso narrador como uma menina com olhos com cor de lama e uma marca de nascença em sua testa com cor de cocô, essa descrição logo encontra paralelo na introdução de Max, resumida pelo locutor de resultados da loteria (da qual o personagem sempre participa), ao enunciar com entusiasmo a pergunta “are you a WINNER or a LOSER?”, cuja resposta indubitável é reforçada pelo ato de o personagem rasgar imediatamente, e mais uma vez, o bilhete no qual depositava sua esperança.

Em um universo opressivo no qual até um amigo imaginário de infância recorre a livros de autoajuda e o pedinte nas ruas acaba por insistir que os transeuntes mantenham seu dinheiro, por acreditar que nada mudará, Mary e Max são almas solitárias que encontram na ausência de amigos seu ponto inicial e mais forte de conexão. A impressão é a de que, negligenciados pelo mundo que os rodeia (em uma relação de causa e consequência com a própria decisão de também se afastarem desse mundo, como o narrador pontua em certo momento) as ações da dupla são observadas apenas pelos animais à sua volta (o galo Ethel, a extensa dinastia de peixes nova-iorquinos, o papagaio, o gato caolho e os inúmeros insetos que permeiam os ambientes em estado de evidente deterioração) e nada mais podem fazer do que reagir aos infortúnios humanos com expressões antropomórficas de choque e tédio.

God hates fat people

Ao contrário do que ocorre com os animais, alguns coadjuvantes recebem tratamento mais pessoal na exposição de suas jornadas paralelas, não obstante o reduzido tempo de tela. É o caso de Damien Popodopoulos (dublado pelo inexpressivo Eric Bana), com quem Mary vem a se casar e que, ao abraçar sua homossexualidade há tempos reprimida, parece finalmente dominar a gagueira, conquista sintomática da autoaceitação (um dos subtextos centrais da película); e também de Len Hislop, vizinho da menina, que, em uma trajetória semelhante, após se trancar em casa por muitos anos, no momento em que nossa protagonista mais precisa de uma intervenção externa, consegue enfrentar sua agorafobia, quebrando uma alegórica barreira autoimposta para explorar os limites de uma realidade que até então somente observava, assustado, de longe.

Apesar da força dessas histórias secundárias, o título de verdadeiro “terceiro personagem” de Mary e Max fica com o seu narrador. Ao contrário do que ocorre com muitas obras que também adotam narrações em off, cujo narrador onisciente acaba por imprimir um tom de maior distanciamento entre o espectador e os personagens – cujas vozes e pensamentos se expressam menos espontaneamente, em prol da descrição de um terceiro desconhecido -, as intervenções do narrador de Mary e Max (interpretado por Barry Humphries) revelam-se, na maioria das vezes, oportunas, precisas e curiosas em seu apelo tragicômico, embora possam ser percebidas como cansativas por muitos, já que sua intensa verborragia é privilegiada em detrimento de diálogos propriamente ditos entre os personagens. Além disso, é curioso notar como a presença constante de um narrador fascinado por descrições peculiares e desimportantes das vidas de seus objetos de estudo aproxima ainda mais o trabalho de Adam Elliot da obra de outro diretor e roteirista consagrado pela forma fabulesca e excêntrica com a qual conta suas histórias, Wes Anderson (de “O Grande Hotel Budapeste” e “Moonrise Kingdom”). Entre tantas outras, a ideia de Max de que peixes só deixam de fumar as bitucas jogadas no mar por não possuírem bolsos para guardarem isqueiros, por exemplo, parece ter saído diretamente de um dos roteiros de Anderson.

As dublagens da dupla principal também não decepcionam. O saudoso Philip Seymour Hoffman, embora quase irreconhecível, brinca com os tons de desânimo e até de certa sabedoria duvidosa  na voz de Max.  A seu turno, se Toni Collette pouco tem a fazer na animação, diante das breves falas da versão adulta de Mary, a dubladora de sua versão infantil, Bethany Whitmore (com impressionantes 10 anos de idade, à época), acerta ao conferir vulnerabilidade e doçura na leitura das cartas escritas pela menina.

Pretending to Be Normal

Mas essa cativante leveza infantil nem sempre predomina no filme. Desde o início, ao revelar o suicídio da mãe de Max, ocorrido quando este era apenas um garoto de seis anos, o longa quebra aquele antiquado preconceito de que animações são apenas voltadas para o público infantil (não que isso tenha o efeito de desmerecer outras obras, mas esse é um objeto para outro debate). E, ao sobrepor tal informação relativa ao passado de Max com a imagem de um cachorro quente de chocolate por meio de um corte seco, Elliot não apenas estabelece o ritmo intenso e agridoce que permeará todo o roteiro, como também já indica a maneira que personagem encontra para lidar com suas dores e ansiedades – a compulsão alimentar.

Ao lado da obesidade e do suicídio, muitos temas que, em outros filmes (animações ou não), seriam tratados como tabus, por serem “pesados demais” para o “público médio”, aqui são explorados com maturidade e respeito, como normalidade, autoimagem e autoestima, negligência parental, bullying e doenças mentais. Sobra espaço na trama até para críticas pontuais à religião – em certo momento, Mary afirma que sua amiga iria para o inferno por ter uma visão diferente da sua quanto ao surgimento de bebês, ao passo que Max, embora aparente viver em paz com sua orientação ateia, continua a explicar a geração do ser humano com base em conceitos tão absurdos (ovos chocados por rabinos, freiras e prostitutas, a depender da religião do(a) genitor(a), ou da falta dela) quanto outros ainda hoje tão propagados. Tal crítica parece ser recorrente na filmografia de Elliot, que também explora o tema em Harvie Krumpet, no qual o personagem-título registra em seu livro de fatos que a Bíblia foi escrita pelas mesmas pessoas que pensavam que a Terra era plana.

Ovos

Responsáveis por grande parte do fio condutor da narrativa, os transtornos psicológicos recebem o tratamento sensível que, infelizmente, não lhes é conferido pela sociedade em geral – que, no caso da depressão, preferindo acreditar que se resume a um mero importúnio passageiro e imotivado, que poderia ser solucionado por meio da simples força de vontade da vítima, acaba por jogar sobre os já fatigados ombros desta ainda mais um peso: o da repressão social.

O filme é igualmente eficaz ao jogar luz sobre a Síndrome de Asperger, espécie de autismo que, longe de debilitar completamente aquele que a possui, traz consigo dificuldades de relacionamento social em diversos graus. Prova do sucesso do roteirista ao abordar com delicadeza o tema é o fato de sequer podermos detectar a existência de uma doença em Max de imediato, sendo sua extensão conhecida gradualmente ao longo da projeção. Soma-se a isso a maneira como, em virtude das lentes repletas de empatia comandadas por Elliot, podemos facilmente nos identificar com muitos dos dilemas e das inseguranças do personagem (a sensação de não pertencimento, a ansiedade ao se deparar com situações novas, o receio de se relacionar com o próximo, a incompreensão de algumas regras sociais, entre outros), embora não padeçamos do mesmo transtorno mental e talvez nem experimentemos tais sintomas com tamanha intensidade (ou em absoluto). Afinal, podemos honestamente reconhecer em Max o “doente” em nossa sociedade, se é ele quem parece ver com maior clareza absurdos tão inofensivos quanto a necessidade de existência de uma tabela com o horário de ônibus, se estes nunca são pontuais; ou tão lesivos quanto o imenso volume de lixo nas ruas e a destruição da flora e flora globais?

Inclusive, reside nessa empatia o laço que reforça a amizade dos protagonistas. É por isso que uma menina de idade muito inferior que um senhor “quarentão”, como gesto de carinho, resolve compartilhar suas lágrimas com ele, ao ouvir que possui dificuldades para chorar (e poucos atos estão tão atrelados ao conceito de amizade quanto a intimidade de partilhar seus sofrimentos mais interiores com alguém em que se confia). Pela mesma razão, um cidadão de uma metrópole americana decide abrir mão da sonhada coleção de bonecos originais que levou toda a sua vida para completar, em prol da alegria de uma jovem do interior australiano (e poucos gestos representam tanto a amizade quanto a descoberta de que a alegria de quem é querido pode, no fim do dia, valer tanto quanto – ou mais que – o prazer puramente egocêntrico). A idade, a distância e o contexto social, aqui, são meros detalhes, pulverizados pelo verdadeiro companheirismo.

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Além da já comentada solidão, essa cumplicidade nasce também dos diversos problemas de autoestima que os personagens enfrentam, alegorias para a própria situação do indivíduo em nossa sociedade, tema recorrente na obra. Não é à toa que um dos objetos mais presentes nos ambientes retratados é o espelho, e a expressão mais valorizada pela trama é o sorriso. Tampouco é aleatória a escolha do Noblet Vaidade (cujo objetivo de vida é “ser amigo de todos”, vejam bem!) como o preferido de Mary, bem como uma das fantasias mais recorrentes de Max ser a existência de uma Fada dos Gordos, responsável por sugar, na discrição da noite, a gordura das pessoas.

Na trajetória de Mary, a mancha em sua testa é motivo de constantes ataques por seus colegas de escola e passa a incomodá-la de tal maneira que influencia a definição de toda a sua personalidade e relação com o mundo exterior. Basta perceber como, não obstante os constantes treinos no espelho, a menina não consegue esboçar um sorriso sequer, o que leva sua mãe, alienada aos reais sofrimentos da filha, a desenhar com batom um sorriso falso sobre seus lábios e bochechas, situação que apenas agrava o bullying sofrido. Assim, ao atingir a idade adulta, Mary decide retirar a mancha mediante intervenção cirúrgica, e, em conjunto com o seu recente casamento, passa a se declarar, finalmente, completa, tendo atingido os marcos socialmente aceitos para tanto.

Mesmo assim, a jovem permanece sem conseguir sorrir naturalmente, ostentando apenas traços “quebrados” em sua boca. É sintomático, inclusive, que, ao se deparar com a insegurança provocada pelo fato de seu marido a trocar por outro homem, Mary volte a buscar no espelho a velha mancha, não só como um reflexo involuntário, mas também como uma forma de se reconfortar naquele “defeito” que, por tanto tempo, identificava como a razão para a sua falta de autoestima e de sua exclusão social (algo que seu ex-marido desmistifica em uma carta posteriormente). Da pior forma, Mary parece notar que um sorriso genuíno não é o tipo de reação que pode ser construída artificialmente, em paralelo com a pouca valia que possui uma autoestima superficial e socialmente forçada, como a de todos nós ao, em redes sociais ou “na vida real”, cedermos ao impulso de ostentar sucessos e seguranças que, no fundo, não correspondem à realidade, nem à própria noção que fazemos de nós mesmos, de tão distraídos que estamos para investigar o que realmente nos completa e nos falta, ou o que podemos aceitar ou não em nossas personalidades e corpos.

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Por sua vez, Max, embora afirme sentir-se completo e estar bem consigo mesmo, guarda na frente do espelho de seu apartamento o “autorretrato” que Mary lhe enviou quando criança. Esse mesmo desenho faz com que ele, após refletir sobre sua postura de vida, tente emular o sorriso visto no papel. O resultado, apesar de forçado (e até um pouco macabro), representa uma novidade no rosto do personagem, que até então somente descrevia para sua pen pal os momentos em que seu cérebro estaria sorrindo, em alusão a uma alegria mais racional do que sensorial e espontânea.

Além disso, não se pode ignorar que, na idealização de uma ilha deserta sugerida por seu psiquiatra, Max não conta com quaisquer roupas ou utensílios, exceto por um espelho, que simboliza a necessidade de embarcar em uma jornada de autoconhecimento, despido de todas as distrações e os penduricalhos sociais inseridos em seu cotidiano. Por isso, tudo indica que, na metade da trama, sua frustração seja decorrente não apenas da falta de sensibilidade de Mary ao utilizar a imagem e a história de seu amigo como objeto de estudo em sua pesquisa acadêmica. Embora a sensação de traição seja clara e natural, o personagem parece ser obrigado a enfrentar com maior coragem as consequências de sua síndrome e as ansiedades que não decorrem somente dela, mas também de outros fatores, como o seu histórico familiar e a repressão social oriunda de mensagens cotidianas, como “God hates fat people”, observada na reunião de “comedores anônimos” que frequenta.

De fato, o caminho do amadurecimento passa, primeiro, pela franqueza de descobrir suas mais incômodas falhas e dificuldades, de maneira a evitar a saída mais fácil de culpar exclusivamente o mundo ao seu redor por elas. Exemplo disso é a intolerância de Max ao que é diferente ou reputado errado por ele, sentimento que chega ao ápice no momento em que tenta enforcar um mendigo por ter jogado uma bituca de cigarro no chão, evento que desperta sua atenção para a necessidade de perdoar, nascida da compreensão do próximo como semelhante e, assim, como ser igualmente repleto de imperfeições.

Im sorry

É nessa ambientação de conflitos internos que o filme desenvolve outro de seus subtextos centrais: a luta pela preservação e pela manifestação livre da individualidade, por mais excêntrica que seja, em um mundo tomado por influências opressoras que tendem a obliterá-la – influências essas que os próprios personagens, e, “aqui fora”, nós mesmos, somos responsáveis por reproduzir, e não exclusivamente “o outro”, como Mary e Max acabam por descobrir ao final de suas jornadas.

Daí parte a necessidade de autoaceitação, tão resumida no didático biscoito que Max recebe de uma estranha, com os dizeres “love yourself first”. Esse amor próprio, aliás, parece ser tratado pela mensagem do filme como o objetivo primordial em nome do qual a jornada de cada ser humano deve se guiar, de forma que até mesmo as idealizações de conquistas que colocamos como metas principais em nossas vidas podem ser facilmente trituradas no caminho, ao notarmos que não têm a real aptidão de nos “completar”. Isso é o que literalmente acontece com o bem-sucedido livro publicado por Mary, bem como, metaforicamente, com a retirada cirúrgica de sua mancha e a realização dos sonhos de Max, ao finalmente acertar os números da loteria.

Love Yourself First

Só não pense que, no fim, Elliot tenta iludir o espectador com um falso discurso acerca da existência de respostas, valores ou sentimentos que sejam capazes de completar plenamente a alma humana, até porque, aparentemente, tanto Mary quanto Max acabam por apenas aprender a conviver melhor consigo mesmos, sem, contudo, sanarem todas as suas dúvidas ou resolverem por inteiro seus dilemas interiores. A única certeza a que o idealizador da obra parece chegar diz respeito à importância dos laços de amizade, e de todo o processo de encontrar parte de si no outro, com defeitos, diferenças e tudo o mais. Nada mais natural, portanto, que os personagens, fragilizados por tantas dificuldades para lidar com a vida, vejam nesse forte vínculo uma oportunidade de refúgio, apoio e crescimento mútuos, pouco importando que acabem por nunca se encontrar fisicamente, última ironia plantada pelo roteiro.

Ora, pegando emprestado os elementos do icônico discurso final de Max, o que mais se pode desejar no trajeto de nossas sofridas calçadas pessoais (tenham elas mais ou menos rachaduras, cascas de banana e bitucas de cigarro) do que a companhia de amigos nos quais se tenha confiança suficiente para entregar um pouco das suas mais íntimas lágrimas, dividir uma trivial lata de leite condensado ou descobrir uma excitante nova receita de cachorro quente de chocolate?

Chocolate Hot Dog

One thought on “Mary e Max: Uma Amizade Diferente

  1. Lourenço, que análise!!! Adorei esse filme. É um daqueles muito muito impactantes!

    Vivo lembrando da pergunta: os bebês vêm das latas de Coca Cola? Hahaha

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